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Números Perplexos – ou – Por que j² = 1 ?

Você conhece os números perplexos? Se não, leia este post. Se já conhece, leia também.

Esta postagem é análoga à dos números complexos: “Por que i² = –1 ?”. Apesar de não ser necessário, é importante que você leia os dois textos em paralelo, para ver as relações e para entender melhor as motivações.

Novamente o objetivo do texto é construir os números perplexos com motivações geométricas, sem qualquer preocupação com o desenvolvimento histórico da teoria.

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Fato Básico da Motivação Geométrica

O ambiente inicial é o mesmo que dos números complexos: o plano. Lembra: “…encerra as possibilidades numéricas de natureza unidimensional… isso não significa que não haja números ‘para além’ dos números reais… por que não pensar num sistema numérico que se relacione com os pontos do plano, assim como os números reais se relacionam com os pontos da reta…”? (reforçando: estou seguindo o outro texto: “Por que i² = –1 ?”).

Vamos construir tal sistema, mas desta vez a motivação geométrica será outra. O conjunto numérico será $\mathbb{R}^2$, isto é, todos os pares ordenados de números reais, que podem ser representados por um plano cartesiano. Como em qualquer outro sistema numérico, queremos que esses números correspondam a alguma medida (norma), que possam ser operados (adição e multiplicação) e que as operações sejam compatíveis com as medidas.

Fato básico: dado $(x,y)$ de $\mathbb{R}^2$, existe uma única hipérbole equilátera centrada na origem que passa pelo ponto, cuja equação é $x^2-y^2=r^2$. Isto sugere que a definição da norma (ou distância do ponto à origem) seja o valor:

$$\eta(x,y)=x^2-y^2.$$

Essa definição é o que caracteriza a geometria hiperbólica associada ao sistema numérico, e sua estrutura algébrica será definida com base nesta geometria. Observo que o conjunto $\mathbb{R}^2$ é bastante usado como espaço vetorial, ou seja, com uma operação de adição e um produto por número real, que nos ajudarão adiante.

As Operações

ADIÇÃO: Desta vez, se fizermos a adição coordenada a coordenada, não vale a desigualdade triangular, mas mesmo assim vamos mantê-la (é a operação do espaço vetorial mais usado):

$$(x,y)+(u,v)=(x+u,y+v).$$

MULTIPLICAÇÃO: Vejamos o que acontece se exigirmos que a mesma condição (do outro texto) de compatibilidade da norma com a multiplicação seja satisfeira, ou seja, que para quaisquer pontos:

$$\eta[(x,y)\times (u,v)]=\eta(x,y).\eta(u,v).$$

Começamos pelo lado direito, que é conhecido (do lado esquerdo ainda não sabemos qual é o produto):

$$\eta(x,y).\eta(u,v)=(x^2-y^2).(u^2-v^2)$$

$$=x^2u^2+y^2v^2-x^2v^2-y^2u^2+2xyuv-2xyuv$$

$$=(xu)^2+2xyuv+(yv)^2-((xv)^2+2xyuv+(yu)^2)$$

$$=(xu+yv)^2-(xv+yu)^2$$

$$=\eta(xu+yv,xv+yu).$$

Essa igualdade e a condição de compatibilidade acima sugerem que a definição da multiplicação seja:

$$(x,y)\times (u,v)=(xu+yv,xv+yu).$$

Repare que a diferença para a multiplicação de números complexos é apenas de um sinal!

Definição dos Números Perplexos

Definimos os Números Perplexos como o conjunto $\mathbb{R}^2$ com as operações

$$(x,y)+(u,v)=(x+u,y+v),$$

$$(x,y)\times (u,v)=(xu+yv,xv+yu),$$

e com a norma

$$\eta(x,y)=x^2-y^2.$$

Não é difícil verificar que é um Anel (comutativo e com unidade), ou seja, a única propriedade que falta para ser corpo é a existência de elemento inverso da multiplicação.

Geometria do plano perplexo

Na figura abaixo você pode ver as regiões em que a norma é positiva, negativa e nula. Observe também a hipérbole referente ao ponto w do plano.

Essa hipérbole pode ser parametrizada por $(x,y)=(r cosh\ \theta,r senh\ \theta)$, ou seja:

$$w=\sqrt{\eta(w)}.(cosh\ \theta,senh\ \theta).$$

Observações: 1. A trigonometria está para os números complexos assim como a trigonometria hiperbólica está para os números perplexos; 2. Isso vale se w está no primeiro quadrante, nos outros muda um pouco, mas não quero ficar discutindos esses detalhes técnicos aqui; 3. O theta não é um ângulo, é apenas o parâmetro da parametrização.

Se um número perplexo tem norma igual a $1$, pela identidade da trigonometria hiperbólica, ele é da forma

$$(cosh\ \phi,senh\ \phi).$$

Se multiplicarmos um número perplexo $w$ por outro de norma $1$, veja o que acontece:

$$w\times (cosh\ \phi,senh\ \phi)=\sqrt{\eta(z)}.(cosh\ \theta,senh\ \theta)\times(cosh\ \phi,senh\ \phi)$$

$$=\sqrt{\eta(z)}.(cosh\ \theta cosh\ \phi+senh\ \theta senh\ \phi,cosh\ \theta cosh\ \phi+senh\ \theta senh\ \phi)$$

$$=\sqrt{\eta(z)}.\left(cosh\ (\theta+\phi),senh\ (\theta+\phi)\right);$$

há um deslocamento por cima da hipérbole, uma “rotação” hiperbólica, analogamente ao caso complexo (isso está ilustrado na figura acima pelo produto por uma exponencial).

E o tal do j ?

Assim como nos números complexos, podemos eliminar a notação de pares ordenados, vejamos:

1. A segunda coordenada pode ser representada assim: $(0,y)=(y,0)\times(0,1)$;

2. Qualquer perplexo pode ser separado assim: $(x,y)=(x,0)+(0,y)$;

3. A primeira coordenada comporta-se como número real: $(x+y,0)=(x,0)+(y,0)$ e $(x,0)\times(y,0)=(xy,0)$;

4. O elemento $(0,1)$ satisfaz $(0,1)\times(0,1)=(1,0)$.

De 1. e 2. temos que todo perplexo pode ser escrito na forma $(x,y)=(x,0)+(y,0)\times(0,1)$. O item 3. mostra que a primeira coordenada pode ser abreviada por um número real, $(x,0)=x$, sem modificar os resultados das operações. E o item 4. mostra que, se denotarmos $(0,1)=j$, encontramos um número tal que $j^2=1$, mas não é $1$ e nem $-1$.

Assim, qualquer número perplexo pode ser escrito na forma algébrica:

$$(x,y)=x+y.j.$$

Esta notícia tem 16 comentários

  1. Não conhecia os números perplexos, achei bem interesante como a partir de uma norma, definimos a multiplicação. Mas ficou uma dúvida:

    "Essa igualdade e a condição de compatibilidade acima sugerem que a definição da multiplicação seja" Aí aparece

    (x,y)X(u,v) = (xu + yv, xv + yu)

    Mas logo embaixo, temos

    (x,y)X(u,v) = (xu – yv, xv + yu)

    Creio que a primeira esteja correta e que na segunda houve um erro de digitação. É isso?

    Outro dia, leio com calma a interpretação geométrica. Parabéns pelo post.

  2. Oi William,

    De fato, há vários vetores com "norma" zero e vários com "norma" negativa, o que não pode ocorrer na definição usual de norma. Deixei o nome norma por questão de analogia com o caso dos números complexos, mas concordo que faltou avisar que faria uso não usual da palavra.
    Obrigado pela observação.

  3. O que quer dizer com abordagem utilizando vetores?
    Da maneira como fiz na postagem você pode considerar os pares ordenados como vetores, não muda nada. Você teria o produto por escalar, que apesar de não ser necessário eu acabei usando em alguns momentos, hehehe.

  4. Observe que se utilizasse a notação vetorial no teu post sobre os complexos seria extremamente sistematizado: z^1=(x,y) e z^2=(u,v) como vetores, não perdendo nada do caráter geométrico. No caso do produto não preciso sequer fazer quase nada, pois o produto de z^1 por z^2=(xu-yv,xv+yu). Poderia desenvolver do mesmo jeito a definição sem arbitrariedade. Por esse motivo perguntei como ficaria agora no caso dos perplexos.

  5. Mudar a notação não muda o conceito. De qualquer jeito estou usando vetores, mas repito que neste caso é opcional. O produto que você mencionou é o mesmo definido na postagem. Não entendi o que quer dizer.

  6. Concordo plenamente.
    O produto é o mesmo, mas o resultado não precisa passar por uma grande quantidade de operações, além do que não é necessário assumir: “…Vemos que seria conveniente se o termo $|(cos theta,sen theta)times(cos phi,sen phi)|$ fosse igual a $1$,..” .
    Eu defendo a sistematização ou a formalização como uma forma de tornar o aprendizado do assunto mais simples. Então eu suponha que seria possível tratar ambos, complexos e perplexos numa única formulação.

  7. A formalização sintetiza a teoria, mas não necessariamente é a forma como as pessoas pensam. Às vezes para esclarecer precisamos sair do conforto da nossa sistematização e desengessar o pensamento, flexibilizar as abordagens.
    A formalização dessa parte é curta, se escrevesse só isso daria poucas linhas, não valeria uma postagem, então coloquei mais ideias.
    Agora, complexos e perplexos numa única formulação… Ora, se quiser trabalhar com os dois você pode, nada impede, só teria que ter um propósito para isso. Os dois produtos traduzem geometrias diferentes, o que significaria usar os dois ao mesmo tempo?

  8. Estou de acordo com o fato de que cada pessoa tem uma forma diferente de pensar, mas a economia de pensamento a gente aprende e defendo que esta é a forma que deve ser utilizada para um ensino mais eficiente. O professor tem mais trabalho e não conforto para preparar um aula onde o aluno é conduzido a trilhar um caminho sistematizado e simples. A sistematização permite uma visão ampla do assunto. Quem deve detalhar é o aprendiz, senão ele acaba reproduzindo somente uma sequência de técnicas e em geral, perde o entendimento profundo do assunto.

    A possibilidade de descrever geometrias diferentes numa única formulação mostra a beleza da formalização e conduz a economia de pensamento.

  9. Dou aula na universidade desde 1978, até 1995 era no departamento de Física e agora é no de Matemática. A primeira sistematização que fiz para melhorar o ensino foi da Lei de Gauss. Já empregamos vários métodos de ensino.

  10. Eu não tiro o mérito de nenhum tipo de abordagem, cada uma tem base numa visão filosófica do assunto, cada uma tem um momento em que é mais adequada. As pessoas são acessadas por vias diferentes, mesmo que o aprofundamento do tema convirja para o mesmo lugar. Isso que eu chamo de flexibilizar as abordagens.

    Leia novamente esta frase que você escreveu:

    "…defendo que esta é a forma que deve ser utilizada para um ensino mais eficiente."

    Não há flexibilidade, tem que ser desta forma, independentemente do que aconteça durante o processo de aprendizagem.

    A minha postagem é só uma proposta, só uma abordagem, ela não é uma defesa de abordagem, não defendo uma ou outra. O mais importante é conhecer várias abordagens, incluindo a sistematizada, para poder escolher a melhor em determinado momento.

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