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Por que i² = -1 ?

Tradicionalmente os números complexos são apresentados como um conjunto estranho, pois é admitida a existência de um elemento “imaginário” $i$ tal que $i^2=-1$, com elementos da forma $x+yi$, para $x$ e $y$ números reais, a fim de resolver equações que não têm soluções no conjunto dos números reais (por exemplo, a equação $x^2+1=0$). Essa abordagem é artificial e não responde a muitas perguntas naturais: O que significa multiplicar um número real por $i$? O número $i$ comuta com os números reais? O aluno questionador estaria com o prato cheio!

Em alguns casos essas dificuldades são evitadas definindo as operações de adição e multiplicação sem postular a existência do $i$, tornando-o consequência delas. Neste caso, os números complexos são pares ordenados de números reais; a adição é natural, coordenada a coordenada, a mesma da adição de vetores. Entretanto, a multiplicação é misteriosa, um coelho tirado da cartola. Por que o aluno deveria aceitar a definição $(x,y)\times (u,v)=(xu-yv,xv+yu)$?

O objetivo deste texto é apresentar uma construção dos números complexos com motivações geométricas, sem interesse em resolver equações. Apesar de historicamente a motivação ter sido algébrica, acredito que em termos de aprendizagem a apresentação geométrica seja mais eficiente. Deixo claro que o que segue é destinado para conhecimento do leitor, não uma proposta de abordagem em alguma aula.

Veja uma postagem análoga a esta para os “Números Perplexos: Por que j² = 1 ?”.

 

Fato Básico da Motivação Geométrica

Sabemos que os números racionais, geometricamente, não constituem inteiramente uma reta. Eles são, então, estendidos aos números reais por uma espécie de “completamento” da reta (ver Revista do Professor de Matemática, números 05 e 07, artigos do Geraldo Ávila), o que encerra as possibilidades numéricas de natureza unidimensional. Mas isso não significa que não haja números “para além” dos números reais. Por não perceber essa possibilidade, pode-se ter dificuldades para imaginar um número cujo quadrado seja negativo, daí a infeliz denominação de número imaginário. Por que não pensar num sistema numérico que se relacione com os pontos do plano, por exemplo, assim como os números reais se relacionam com os pontos da reta?

Vamos construir tal sistema: o conjunto numérico será $\mathbb{R}^2$, isto é, todos os pares ordenados de números reais, que podem ser representados por um plano cartesiano. Como em qualquer outro sistema numérico, queremos que esses números correspondam a alguma medida (módulo), que possam ser operados (adição e multiplicação) e que as operações sejam compatíveis com as medidas.

Fato básico: dado $(x,y)$ de $\mathbb{R}^2$, existe uma única circunferência (de raio $r$) centrada na origem que passa pelo ponto, cuja equação é $x^2+y^2=r^2$. Isto sugere que a definição do módulo (ou distância do ponto à origem) seja o valor de $r$:

$$|(x,y)|=\sqrt{x^2+y^2}.$$

Essa definição é o que caracteriza a geometria Euclidiana associada ao sistema numérico, e sua estrutura algébrica será definida com base nesta geometria. Observamos que o conjunto $\mathbb{R}^2$ é bastante usado como espaço vetorial, ou seja, com uma operação de adição e um produto por número real, que nos ajudarão adiante.

 

As Operações com Motivações Geométricas

ADIÇÃO: Podemos fazer a exigência geométrica de que seja válida a desigualdade triangular: $|(x,y)+(u,v)|\leq |(x,y)|+|(u,v)|,$ que significa que a medida de um lado de um triângulo é menor que a soma das medidas dos outros dois lados (a igualdade é válida quando os três pontos são colineares, caso em que o triângulo fica degenerado).
A expressão do lado direito da desigualdade está bem definida, pois é a adição de números reais, enquanto que a expressão do lado esquerdo ainda não está definida. Felizmente a própria adição mencionada acima, a do espaço vetorial (coordenada a coordenada), a maneira mais natural e simples de se definir a adição, faz com que a desigualdade seja válida:

$$(x,y)+(u,v)=(x+u,y+v).$$

MULTIPLICAÇÃO: Não é natural à primeira vista, vamos dar uma motivação para sua definição. Considere $(x,y)$ com ângulo $\theta$ em relação ao eixo definido pela primeira coordenada e $(u,v)$ com ângulo $\phi$.

Das “definições geométricas de seno e cosseno”, podemos escrever

$$(x,y)=(|(x,y)|cos\ \theta,|(x,y)|sen\ \theta)=|(x,y)|(cos\ \theta,sen\ \theta),$$

$$(u,v)=(|(u,v)|cos\ \phi,|(u,v)|sen\ \phi)=|(u,v)|(cos\ \phi,sen\ \phi),$$

onde a última passagem é a aplicação do produto já mencionado de número real por vetor. A representação acima se chama forma polar. Supondo que a multiplicação em $\mathbb{R}^2$ seja comutativa com números reais,

$$(x,y)\times (u,v)=|(x,y)|.|(u,v)|\cdot(cos\ \theta,sen\ \theta)\times(cos\ \phi,sen\ \phi).$$

Observe que $|(cos\ \psi,sen\ \psi)|=1$, para qualquer valor de $\psi$ (pela identidade trigonométrica), significa que reduzimos a multiplicação entre quaisquer pontos de $\mathbb{R}^2$ à multiplicação entre dois elementos da circunferência centrada na origem e de raio $1$. Aplicando o módulo a ambos os membros da igualdade, temos

$$|(x,y)\times (u,v)|=|(x,y)|.|(u,v)|.|(cos\ \theta,sen\ \theta)\times(cos\ \phi,sen\ \phi)|.$$

Vemos que seria conveniente se o termo $|(cos\ \theta,sen\ \theta)\times(cos\ \phi,sen\ \phi)|$ fosse igual a $1$, o que simplificaria a igualdade. Isto aconteceria se o produto entre dois elementos da circunferência unitária também pertencesse a esta circunferência. Neste caso teríamos

$$|(x,y)\times (u,v)|=|(x,y)|.|(u,v)|.$$

Vamos supor então que esta igualdade sempre seja válida. A multiplicação do lado esquerdo da igualdade é a que queremos definir, portanto começaremos a trabalhar pelo lado direito, que é conhecido:

$$|(x,y)|.|(u,v)|=\sqrt{x^2+y^2}.\sqrt{u^2+v^2}$$

$$=\sqrt{x^2u^2+y^2v^2+x^2v^2+y^2u^2-2xyuv+2xyuv}$$

$$=\sqrt{(xu)^2-2xyuv+(yv)^2+(xv)^2+2xyuv+(yu)^2}$$

$$=\sqrt{(xu-yv)^2+(xv+yu)^2}$$

$$=|(xu-yv,xv+yu)|.$$

A última expressão aliada à suposição feita acima sugere que a multiplicação seja definida como

$$(x,y)\times (u,v)=(xu-yv,xv+yu).$$

 

Definição dos Números Complexos

Com essas operações já definidas não é difícil verificar que os axiomas de corpo são satisfeitos. Definimos então o Corpo dos Números Complexos $\mathbb{C}$ como o conjunto $\mathbb{R}^2$ com as operações

$$(x,y)+(u,v)=(x+u,y+v),$$

$$(x,y)\times (u,v)=(xu-yv,xv+yu).$$

As motivações geométricas para tal definição, apesar de serem em algum sentido arbitrárias, ajudam a entender a natureza dos números complexos e já verificam algumas de suas propriedades. Veja que agora já podemos determinar qual elemento da circunferência unitária é o resultado da multiplicação de dois elementos desta:

$$(cos\ \theta,sen\ \theta)\times(cos\ \phi,sen\ \phi)=$$

$$=(cos\ \theta.cos\ \phi-sen\ \theta.sen\ \phi,cos\ \theta.sen\ \phi+sen\ \theta.cos\ \phi)=$$

$$=(cos\ (\theta+\phi),sen\ (\theta+\phi)),$$

ou seja, a multiplicação consiste em uma rotação no sentido anti-horário em torno da origem (no caso geral teria ainda o produto pelos módulos dos números multiplicados, que expandiria ou contrairia o resultado).

No entanto, quando trabalhamos com números complexos, não precisamos carregar a notação de pares ordenados, podemos representá-los de uma forma mais simples e parecida com os números reais, basta verificar que:

1. A segunda coordenada pode ser representada assim: $(0,y)=(y,0)\times(0,1)$;

2. Qualquer complexo pode ser separado assim: $(x,y)=(x,0)+(0,y)$;

3. A primeira coordenada comporta-se como número real: $(x+y,0)=(x,0)+(y,0)$ e $(x,0)\times(y,0)=(xy,0)$;

4. O elemento $(0,1)$ satisfaz $(0,1)\times(0,1)=(-1,0)$.

De 1. e 2. temos que todo complexo pode ser escrito na forma $(x,y)=(x,0)+(y,0)\times(0,1)$. O item 3. mostra que a primeira coordenada pode ser abreviada por um número real, $(x,0)=x$, sem modificar os resultados das operações. E o item 4. mostra que, se denotarmos $(0,1)=i$, encontramos o “misterioso” número tal que $i^2=-1$. Assim, qualquer número complexo pode ser escrito na forma algébrica:

$$(x,y)=x+y.i.$$

 

Veja uma postagem análoga a esta para os “Números Perplexos: Por que j² = 1 ?”.

Esta notícia tem 13 comentários

  1. É engraçado como a matemática tem todo o seu "ar de formalidade", mas quando falamos com as pessoas sobre matemática, ou assuntos relacionados, falamos com tanta informalidade e geralmente nessas conversas conseguimos acrescentar mais informação para as pessoas para as quais estamos conversando do que numa aula no sentido mais "clássico". Veja que coisa, falamos de "número i", quando na verdade ele é composto ordenadamente por dois números.

  2. Paleari,

    Um bom livro supera uma "aula no sentido mais 'clássico'".

    Mas uma aula deveria superar qualquer outro meio de comunicação, do contrário não deveria existir professores.

    ['supera': no sentido da qualidade de transmitir a informação, de fazer com que o outro compreenda-a]

  3. Infelizmente é assim mesmo, eu não sei, eu ainda sou muito mais a favor de aulas no estilo "idéias" do que as aulas no estilo "formais ao extremo". As aulas de idéias sem ficar se preocupando demais com formalização me acrescentam muito mais, deixa minha visão muito mais "ampla". Os professores e também os alunos precisam saber "conversar" uns com os outros. Se eu quero ver detalhes das coisas eu tenho uma imensão de livros pra ler, e eu acho praticamente tudo o que eu precisar se fizer uma boa pesquisa.

  4. Os livros mais técnicos são justamente para mostrar a formalização e os detalhes mais minuciosos.

    É claro que o professor também tem o papel de ajudar o aluno a aprender a ler um livro técnico desse, e daí surgem descontentamentos com aulas só de ideias, de fato as coisas ficam mais bagunçadas. Tem que se procurar um equilíbrio, dentro dos objetivos da aula.

  5. Hehehe. Eu penso nesse equilíbrio, quando for dar aula é esse tipo de coisa que vou tentar fazer. O tempo em sala de aula é escasso, então também é necessário saber escolher bem os tópicos e idéias que você pretende expor. Acredito que seria uma boa aula aquela que o professor sabe se preocupar com a exposição de idéias, mas que saiba detalhar mais em algum teorema importante ou uma definição importante (importante aqui é relativo, o aluno não sabe que o é importante, e também em que sentido é importante, as vezes nem o professor, depende da sua experiência também). Acho legal também que o professor deixe os detalhes das coisas mais simples como exercício, e não só isso, mas desafiar os alunos a pensar em certas questões que são discutidas em sala, exercitar a mente "crua" do aluno, mesmo que ele não tenha idéia do que seja interessante pensar, mas só o fato do exercício já é uma grande coisa acredito eu.

  6. Muito bom o post Renato, explicou passo os conceitos básicos dos números complexos.

    Com relação ao ensino, realmente irá depender da visão, da experiência e do conhecimento do professor para que os alunos tenham uma boa aula. Eu procuro mesclar ideias, diagramas, rigor e exemplos em minhas aulas. Mas procuro sempre saber mais e mais sobre o que eu estou ensinando. Por exemplo, lecionando Geometria Analítica, fiquei interessado em estudar tensores e assim por diante. No futuro, compartilharei esses estudos com vocês através do blog.

    As reflexões do Ricardo são muito profundas e já demonstra um grande preocupação com o ensino. O último comentário foi bem interessante.

  7. Obrigado, Paulo Sérgio.

    Algum dia vou postar algo sobre como mesclar algumas coisas em aula: formalismo, ideias, exemplos, etc (pelo menos sugestões). Já tenho alguns rabiscos pré-digitadas, vamos ver se sai alguma coisa boa, hehe.

    Certamente os comentários do Ricardo foram muito bons, coisas que todo professor deveria refletir de vez em quando. O que me alegra é que a minha postagem deu abertura para tais comentários, mesmo sem ser o objetivo dela. Muito bom!

    Valeu!

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